Ordem dos Médicos Contra a Utilização do Glifosato da Monsanto

Ordem dos Médicos Contra a Utilização do Glifosato da Monsanto

17 de Fevereiro, 2016 0

“Para o glifosato a conclusão é clara: este herbicida deveria ser suspenso em todo o mundo.

Excerto do editorial da Revista Ordem dos Médicos nº 161 (julho/agosto 2015) assinado pelo Dr. José Manuel Silva, atual bastonário:

“Efectivamente, a sustentabilidade do planeta Terra e as doenças ligadas ao meio ambiente são o grande desafio vital e ético da humanidade e da medicina. Poderiam ser dados muitos exemplos. Um dos milhares possíveis é o glifosato, vulgo Roundup, um dos seus nomes comerciais, um herbicida usado de forma sistemática e generalizada na agricultura e nas cidades e o mais utilizado em Portugal.

Na última década a aplicação de glifosato em Portugal aumentou cerca de 50%, com 1400 toneladas usadas só em 2010. Ao todo, no mundo, consomem-se mais de 130 milhões de toneladas por ano.

O resultado é que o glifosato já é detetado em análises de rotina aos alimentos, ao ar, à água da chuva e dos rios, à urina, ao sangue e até ao leite materno. A sua presença é de tal modo generalizada que os limites legais foram artificialmente “aliviados” para que pudesse continuar a ser usado, com sérios riscos potenciais e cumulativos para a saúde humana.

Na União Europeia, em 1999, o limite máximo admissível para o glifosato na soja subiu 200 vezes (de 0,1 para 20 mg/kg) e, em 2013, o governo americano também alargou a tolerância para dezenas de alimentos. Outros países, e até o Codex Alimentarius, têm feito o mesmo.

Não esquecer que os produtos e sementes de plantas transgénicas desenvolvidas para resistirem ao glifosato podem transportar maiores concentrações deste tóxico, que é usado mais liberalmente nestas circunstâncias para matar as plantas ‘daninhas’

Artigos recentes demonstram a associação epidemiológica e a plausibilidade biológica do glifosato como factor potencialmente na génese do aumento da incidência de doença celíaca, infertilidade, malformações congénitas, doença renal, autismo e outras patologias (Interdiscip Toxicol, 2013; 6 (4): 159-84 // Int J Environ Res Public Health, 2014; 11: 2125- 147 // Surg Neurol Int, 2015; 6: 45).

A mortalidade na intoxicação aguda varia entre 3,2 e 29,3%, essencialmente por doença pulmonar e/ou renal. Os vários mecanismos patológicos de ação do glifosato são bem conhecidos, e vão das alterações da flora intestinal à disrupção do citocromo P450, deficiências vitamínicas, quelação de metais, deficiência em molibdénio e selénio, etc..

Uma preocupação adicional é o facto da Agência Internacional para a Investigação do Cancro (IARC) ter anunciado, em março deste ano, a sua nova classificação para o glifosato, que passou a ser um “carcinogénio provável”.

A IARC é a maior autoridade mundial no que toca ao cancro e esta decisão foi tomada por unanimidade entre os 17 especialistas do painel liderado pelo Dr. Aaron Blair, um geneticista que durante 30 anos dirigiu a unidade de neoplasias profissionais do Instituto Nacional do Cancro americano. A IARC avaliou em 1ª mão toda a investigação científica publicada até à data nesta área, nomeadamente em termos epidemiológicos. A razão pela qual não foi atribuída a classificação de ‘carcinogénio demonstrado em humanos’ foi a evidência limitada dos estudos epidemiológicos, particularmente complexos.

Três desses estudos mostram uma relação entre exposição de agricultores ao glifosato e Linfoma não Hodgkin (LNH), cuja incidência muito tem aumentado nos últimos 30 anos, enquanto que 1/4 aponta para o mieloma múltiplo mas não encontra ligação com LNH.
Embora as avaliações em humanos não sejam, segundo a IARC, claramente incriminadoras (como aconteceu, numa fase inicial, com tantos tóxicos), elas são altamente preocupantes. A demonstração dessa associação não é simples porque existe um hiato de anos – às vezes, dezenas de anos – entre a exposição a um agente carcinogénico e o aparecimento do ‘respetivo’ cancro.

Como se tudo isto já não bastasse, dois aspetos adicionais levam a crer que o parecer do IARC poderá estar a pecar por defeito. O 1º refere-se ao facto de que as avaliações se têm focado essencialmente no princípio ativo – o glifosato propriamente dito – muito embora a formulação comercial contenha outros compostos químicos. Investigação consistente aponta para que uma fatia significativa da toxicidade total dos pesticidas possa ser atribuída a esses adjuvantes (BioMed Research International. Vol 2014, Article ID 179691). Apesar da sua benigna reputação, o Roundup está entre os mais tóxicos herbicidas atualmente em uso na União Europeia.

Além disso, o ser humano está exposto simultaneamente a compostos químicos de múltiplas origens e que podem interagir de modo sinérgico.
Alguns exemplos são bem conhecidos em toxicologia: o tetracloreto de carbono e o etanol, em conjunto, têm um impacto bem mais devastador no fígado do que o da sua soma medida em momentos separados. Mas mesmo que o efeito seja apenas aditivo, sem sinergia, nada disso é considerado aquando da avaliação de risco, das aprovações dos compostos e da definição de classificações ou limites. E note-se que quem vive no mundo ocidental transporta no seu organismo centenas de contaminantes sintéticos que nem sequer existiam há 200 anos atrás.
Todos estes dados, e a falta de outros, devem impelir uma reflexão cuidada sobre o futuro do glifosato, em particular, e da gestão de risco químico no domínio alimentar, em geral. O mundialmente reconhecido princípio da precaução estabelece que, face a evidências nítidas de impacto negativo na saúde (ou no ambiente), a ausência de provas científicas definitivas não deve impedir a implementação de medidas minimizadoras.

Para o glifosato a conclusão é clara: este herbicida deveria ser suspenso em todo o mundo.

Quem deve agir em Portugal? Sem dúvida, a iniciativa cabe ao Governo e à Direcção Geral da Saúde. Os interesses económicos não podem nem devem impor-se ao imperativo moral da proteção da saúde da população.

A morosidade dos procedimentos legais também não desculpa a inércia. A legislação europeia permite a ativação rápida de cláusulas de salvaguarda temporárias, enquanto a ciência não apresenta respostas finais.

Abundam os cancros de origem indeterminada, e parte decorre certamente da sociedade altamente industrializada e química em que vivemos. No futuro deverá ser possível melhorar esse quadro. No entanto, para os cancros que já podem ser evitados no presente, a inação governativa é inaceitável.

Quanto aos médicos, não podem continuar a alhear-se destas questões ambientais, sob pena de falharem na prevenção da saúde, o essencial da sua missão, e em muitos diagnósticos. O glifosato é apenas um exemplo entre muitos…”

Fonte: Revista Ordem dos Médicos nº 161

1ª Foto: José Manuel Silva, bastonário da Ordem dos Médicos

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